segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ação, presente e pretensão

O som estridente do despertador on-line me acordou às 6 da manhã. Não me assustei nem me rendi a mais cinco minutos de sono. Levantei, calcei meus chinelos e arrumei a cama. Senti o sono passar. Saí do quarto e liguei a luz da cozinha. Fui pro banho. Senti cada uma das texturas que minha pele tocava: o lençol da cama, o plástico do interruptor, o material emborrachado do chinelo. Não havia nenhuma melodia imaginária tocando na minha cabeça. Não havia nenhum pensamento atravessando aquelas sensações. Nenhuma lembrança do dia anterior vinha me distrair. Nenhum lembrete do que deveria fazer vinha me atormentar. Havia só o agora. Naquele momento eu me senti vivo, me senti presente.

Quando a água morna do chuveiro começou a cair no meu corpo, veio o primeiro pensamento: “E se continuar assim o dia todo?” “Se continuar assim posso prestar atenção em tudo!” “Isso é muito legal!” Destes primeiros pensamentos brotaram as primeiras imagens. Em algumas, dava ótimas respostas de imediato às pessoas que imaginava encontrar no meu dia. Em outras, ajudava as pessoas e elas se surpreendiam com a minha agilidade. Me lembrei de uma cena do filme Homem-Aranha em que Mary Jane tropeça e, acidentalmente, joga a bandeja com seu almoço pro alto. Peter, em segundos, segura a garota e ainda pega a bandeja no ar com o almoço dela completamente intacto. Me imaginei fazendo isso. “Quanta pretensão!!” Percebi que estava pensando e o que estava pensando. Ri de mim mesmo pelo meu pensamento infantil. Voltei a atenção para o que estava fazendo. Mais de quinze minutos se passaram enquanto fui do banho para as telas de cinema. O banheiro já estava cheio de vapor. Me desafiei: “Vou ficar 24 horas completamente atento.” Passei a chave do chuveiro para Verão. “A agua fria vai me acordar de novo”. A agua fria me tirou o folêgo. Não estava preparado para aquilo. Pensei em em voltar a chave para Inverno. Pensei em sair da água. Mas meu orgulho gritou:“FIQUE!” Aos poucos o vapor se dissipou. O espelho desembassou.Vi o amanhecer pela janela. Senti o perfume do sabonete, meu mau-hálito, minha pele molhada e meus dentes batendo. Um latido de cachorro se misturava ao som dos primeiros carros que passavam na rua. Estava atento nos meus cinco sentidos de novo. “Fique aqui e agora!”. Esse pensamento era o único pensamento que permanecia. Era como um mantra, repetindo-se incessantemente. “Fique aqui e agora!Fique aqui e agora!....”

O pensamento tomou corpo. Se dissolveu como pensamento e se tornou ação. O café estava amargo, doce e quente. As grades do portão eram asperas por causa da velha tinta vermelha que descascava. O banco do ônibus era quente e macio. Senti as botas que calçava a cada passo que dava. Senti meu diafragma se comprimir a cada vez que inspirava. Percebi que o perfume da mulher que trabalhava ao meu lado era doce, que as teclas do computador eram asperas e que a textura do papel em que eu anotava recados era macia. Naquele dia nada era bom ou ruim: as coisas simplesmente eram. Tudo era novo mesmo sendo velho. O exótico se apresentava na mesmíssima rotina diária que conhecia há anos. Parecia que eu havia acabado de nascer, que não conhecia padrões, que toda sensação era uma nova descoberta. Gostei daquilo e pensei no tempo que vivi fora de mim, me projetando em milhares de outros “eus” ideais. Fiquei pensativo, percebi o quanto desperdicei minha vida. O arrependimento veio como uma onda.Tropecei no pé de uma mulher neste instante. Percebi que estava pensando e o que estava pensando. Retomei o desafio.

A tarde, conheci uma garota no ônibus. Os olhos dela me chamaram a atenção. Perguntei sobre o livro que lia e percebi que a havia fisgado de algum pensamento profundo quando ela se assustou com a minha voz. Olhando nos olhos dela eu permaneci atento. Vivi toda a conversa com tudo o que podia sentir e de todas as formas que podia responder. As falas eram impessoais, mas a conversa foi completamente íntima. Falavamos sobre um autor, mas moviamos os olhos, respiravamos e nos posicionavamos ali como se dançassemos com todos os nossos sentidos. Ela me disse seu nome e me passou seu e-mail no último instante antes de se levantar para descer. Desceu dois pontos antes do meu. Lembrei de todo o meu dia. Me senti vivo. Estava no domínio de mim. Fiquei impressionado.

Desci do ônibus empolgado com a idéia de viver isso mais vezes. Senti a necessidade de compartilhar isso com alguem, passar isso adiante de alguma forma. Pensei em escrever um texto para um blog que prometi criar a algum tempo. Começar falando de algumas pesquisas sobre a falta de atenção das pessoas no trabalho e na propria vida. Depois falar sobre as inúmeras descobertas que a atenção ao presente pode proporcionar. Falar como um blog poderia ir além da mera pretensão de um autor em dissertar sobre o universo dentro de seu umbigo e do quanto que encarnar a própria vida pode ser mais enriquecedor do que narrá-la compulsivamente.

Foi assim que comecei esse texto, querendo falar de atenção, de estar presente e de encarnar seu próprio corpo.

De tudo o que disse que ia fazer ficou só a pretensão. Escrevi várias linhas de texto em primeira pessoa, narrando um dia que nunca aconteceu. Criei uma ficção para falar de ação. Da primeira à ultima linha eu acreditei estar completamente atento, mas ignorei o “bom dia” da minha irmã e minha mãe me chamando pro almoço. De tudo que pretendia fazer, se realizou só a criação do blog e do texto. Não consegui estar presente durante toda esta manhã justamente por tentar prender o presente, amarrar a lógica do texto e capturar a sua atenção. Se me soltasse mais, não me apegasse a um texto ou a esperança de que alguem me mandasse um texto do tipo “manual de instruções: como ficar presente” provavelmente eu conseguiria ficar presente. Porém , mesmo este pensamento, não passaria de uma fórmula para a mesma coisa tentando enganar seu próprio autor . Foi assim que eu cheguei a conclusão de que não existe nenhuma outra forma de estar presente a não ser ficar aqui e agora.